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Jamil Chade

Nas urnas, suíços vão decidir futuro das armas

Jamil Chade

15/05/2019 04h00

 

 

GENEBRA – Os suíços vão às urnas no próximo fim de semana para decidir se aceitam a nova Lei de Armas proposta pelo governo e que irá dificultar o acesso a certos rifles e estabelecer um maior controle sobre as vendas.

De acordo com as pesquisas de opinião, mais de 60% dos eleitores indicam que estão dispostos a aceitar regras mais rígidas num dos países com o maior índice de armas em proporção ao tamanho de sua população.

O plebiscito ocorre por conta de uma tentativa por parte de partidos de direita e de grupos pró-armas de derrubar, com o voto popular, uma decisão já aprovada pelo Legislativo.

A medida é uma necessidade de adaptar a lei nacional às normas da União Europeia. Apesar de a Suíça não fazer parte do bloco, ela é parte do Acordo de Schengen, tratado que estipula uma livre circulação de pessoas e define fronteiras comuns entre os países do continente.

A partir dos ataques contra o semanário Charlie Hebdo em Paris, em 2015, a UE passou a endurecer suas regras para a venda de certas armas e, por fazer parte do mesmo acordo, os suíços também terão de adotar a nova legislação. Caso contrário, estarão potencialmente excluídos de Schengen.

O governo suíço havia sugerido seguir a linha europeia, o incluiria tornar a compra de armas mais difícil, aumentar a cooperação entre governos e ainda criar um mecanismo para monitorar uma arma. No centro do debate estão as armas semiautomáticas, usadas pelos terroristas em Paris. De acordo com os autores da proposta, se a nova lei entrar em vigor, será mais difícil que tais armas entrem no mercado clandestino e que abasteça grupos criminosos ou terroristas.

No ano passado, o Parlamento suíço aprovou o texto. Pela nova lei, donos de armas semiautomáticas terão três anos para registrá-las. Quem quiser comprar uma dessas armas terá de preencher formulários e explicar o motivo pelo qual necessita uma arma com tal poder de fogo.

Para quem pratica o tiro, provas a cada cinco anos precisam ser apresentadas para confirmar que o dono da arma de fato frequenta um clube e que pratica o tiro com certa regularidade. Também haverá regras claras para colecionadores e até mesmo para museus.

A legislação também afeta os produtores e importadores, que serão obrigados a comunicar ao governo cada vez que uma arma, peças ou munições são vendidas. A notificação precisa ocorrer num espaço de 20 dias.

Os suíços conseguiram arrancar da UE algumas exceções. Bruxelas, por exemplo, queria que fosse declarado que ficaria proibida a qualquer cidadão a posse de uma arma semiautomática. Pelo entendimento, licenças específicas vão ser criadas e reguladas pelas autoridades.

A UE também cedeu no que se refere aos rifles que os soldados recebem quando vão ao Exército. Pelas tradições locais, esses cidadão podem ficar com suas armas após o serviço militar ser concluído. A ideia é que eles possam continuar praticando o tiro e, em uma eventual invasão externa, estar prontos para defender o país.

O resultado é que, hoje, num país com 8,5 milhões de pessoas, cerca de 2,5 milhões de armas estariam circulando, uma das maiores taxas do mundo. Apenas três países teriam um índice superior: EUA, com 101 armas para cada cem habitantes, Alemanha, com 32 para cada cem pessoas, e a Áustria, com 30 para cada cem cidadãos.

Contra

Mas a lei aprovada pelo Parlamento passou a ser contestada, principalmente pelo partido de direita, o SVP. Dois argumentos foram apresentados: a lei estava desarmando a população e minando a independência da Suíça, que tradicionalmente conta com um exército de milícias.

O partido ainda conseguiu um poderoso aliado: os clubes de tiro do país, que, aliados aos grupos pró-armas, formaram uma frente para tentar impedir que a nova legislação seja adotada.

Respeitando a democracia direta da Suíça, os grupos conseguiram reunir mais de 120 mil assinaturas em menos de três meses, obrigando o governo a convocar um plebiscito. Chegar a esse número não foi uma tarefa complicada para o partido de direita. Apenas os 2.900 clubes de tiro reúnem mais de 130 mil filiados na pequena Suíça.

Com a maioria de seus membros comprando armas semiautomáticas, os clubes passaram a considerar a lei como uma ameaça a um dos esportes mais tradicionais do país.

Mas o que está em jogo nas urnas vai muito além de um esporte. Para o partido de direita, a campanha é pela suposta liberdade do cidadão, simbolizada pela posse de uma arma.

A campanha também tenta insistir na questão da independência e neutralidade da Suíça. Para membros do partido SVP, a lei seria o início de uma transferência de soberania de Berna para Bruxelas. O controle de armas, segundo o grupo, é típico de "regimes ilegítimos", e não de uma democracia.

 

 

 

Mulheres

De ambos os lados do debate, porém, são imagens de mulheres que estão sendo usadas para convencer os eleitores. Pelo governo, a porta-voz do controle de armas é a ministra da Justiça, Karin Keller-Sutter.

Ela tem percorrido o país para fazer uma garantia: a tradição de armas de séculos não seria minada. Mas também tem alertado que um resultado negativo representaria uma ameaça para os acordos de livre circulação do país.

Do outro lado, a porta-voz do grupo pró-armas é a advogada Olivia de Weck. Pelas cidades suíças, é seu rosto jovem que substitui um setor que, em grande parte, é liderada por homens.

Faltando poucos dias para a votação e com parte do processo já realizado por correio, as pesquisas apontam que os suíços optarão pelo maior controle das armas.

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)