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Jamil Chade

100 dias de certezas absolutas

Jamil Chade

08/04/2019 21h35

GENEBRA – Num mundo repleto de incertezas, é surpreendente a existência de verdadeiras milícias de pessoas com tantas certezas.

Por algum tempo, eu os invejava. Pensava que, certamente, dormiam mais tranquilos, acordavam sabendo para onde iriam, como iriam e o que fariam quando chegassem la.

Eram pessoas que tinham todas as respostas para a conspiração das mudanças climáticas, para o perigo dos terroristas disfarçados de refugiados. Davam receitas a crise em países distantes sem jamais terem pisado la, condenavam do alto de um púlpito o modosde vida diferente ao seu e até tinham sugestões infalíveis para acabar com o jejum do meu time.

O problema é que essas certezas não existem e apenas servem para alimentar uma intolerância macabra.

Ouso dizer que vejo mais em comum num socialista capaz de ver os crimes de Maduro e um liberal que sabe o sofrimento causado pelo capitalismo que diferenças fundamentais.

Talvez o mundo não esteja só dividido entre comunistas e capitalistas. Talvez xingar comunistas – como sugere o novo ministro da Educação – não seja a solução.

Talvez o mundo não esteja só dividido entre judeus e árabes. Talvez visitar um só lado do muro não sirva para nada.

Talvez a sociedade, no fundo, esteja dividida entre os que desfilam com suas certezas absolutas e os que questionam, num novo paradigma de uma comunidade de destino.

Talvez o oposto ao conhecimento não seja a ignorância. Talvez o contrário do conhecimento seja a certeza dogmática, que flerta com a arrogância.

Talvez seja essa certeza que, levada a seu apogeu, justifique massacres por parte de ditaduras de esquerda ou direita. Certezas que fundamentam movimentos extremistas.

Talvez, depois de cem dias, tenha ficado claro que problemas complexos têm soluções complexas. E que vendedores de ilusões com suas guerras imagináveis contra o marxismo cultural descubram que a realidade os está atropelando sem perdão.

Só talvez.

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)