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Jamil Chade

25 anos depois, genocídio de Ruanda precisa servir de alerta

Jamil Chade

07/04/2019 06h54

Foto: I. Inisheer

 

Ao marcar a data, líderes religiosos, comunitários e de democracias devem se levantar contra a normalização do uso do ódio como instrumento político.

 

GENEBRA – "Na primeira vez que fomos informados que nossos amigos foram massacrados, houve um grito de horror. Então, centenas foram mortos. Mas quando milhares foram massacrados e não havia um final para as mortes, um cobertor de silêncio se espalhou".

Bertolt Brecht sabia do impacto que o silêncio poderia ter diante do inaceitável.

Há 25 anos, o mundo repetiu esse silêncio diante de um massacre. Em três meses, um total de 800 mil pessoas foram mortas em Ruanda, num genocídio que marcaria os espíritos de toda uma nação e deixaria uma mancha eterna na história.

Num país onde o cheiro da morte havia se espalhado, o ódio havia levado padrinhos a matar seus afilhados. Vizinhos que costumavam celebrar festas juntos promoveram assassinatos dos mais cruéis. O frenesi das assassinatos começou em Kigali, mas logo se espalhou pelo país. Nas mãos de Hutus comuns, machados e armas caseiras dizimaram parte da população tutsi do país.

Sim, considerações muito específicas de uma ex-colônia africana precisam ser entendidas para que o genocídio entre duas parcelas da população seja explicado. Ruanda, porém, nos traz ainda assim uma lição clara: o ódio como política mata.

E ele não ocorre num vácuo. Mas, sim, passa por um processo particularmente perverso: o de tirar o caráter humano do adversário.

Em primeiro lugar, o discurso do ódio constrói uma narrativa em que aquela oposição mantém hábitos, costumes, religiões e orientação sexual que não cabe em "nossa" civilização.

A desmoralização da legitimidade de uma outra vida é seguida por uma segunda etapa: se um grupo é tão diferente, talvez seus membros nem devam ser merecedores de dignidade, de Justiça, de respeito. As regras da civilização não valem para eles, já que não são "pessoas de bem".

Construído o cenário e alimentado com ódio e opressão, basta um fato para desencadear a barbárie.

Há 25 anos em Ruanda, não faltou a imprensa para ajudar a disseminar o ódio. Não havia Internet nem muito menos Whatsapp. Naquele país africano, o papel macabro coube à Radio Television Libre des Mille Collines, uma estação de rádio que fez parte da escalada de violência.

A emissora havia sido criada um ano antes para se opor às negociações de paz entre o governo e os rebeldes tutsis, criando um sentimento de "nós x eles". As ondas da rádio reforçavam a ideia de uma inimigo, resgatando e misturando uma realidade complexa de séculos de exploração colonial, um clima de injustiça e miséria.

Com a derrubada do avião do presidente Habyarimana, a rádio imediatamente convocou os hutus a uma "guerra final". Os tutsis seriam "baratas a serem exterminadas".

Nos cem dias seguintes, a emissora divulgava no ar a lista de pessoas que precisavam ser assassinadas. Pior: orientava a população sobre onde tais alvos estariam, inclusive quando sabiam dos locais de esconderijo.

Anos depois, o general das tropas da ONU, Romeo Dallaire, lamentou o papel da difusão do discurso do ódio como instrumento fundamental para o massacre. Segundo ele, bloqueando o sinal da emissora e transformando aquelas mensagens em recados de reconciliação já teriam sido atos que salvariam milhares de vidas.

Dois dos executivos da rádio, Jean-Bosco Barayagwiza e Ferdinand Nahimana, acabaram sendo condenados a 35 anos de prisão e prisão perpétua pelo Tribunal Criminal Internacional para Ruanda. O dono de outra revista extremista também foi condenado a prisão perpétua.
Em Ruanda, anos depois de um massacre fratricida, é sobre os ossos do passado que uma sociedade também busca o perdão.

No restante do mundo, chegou o momento de líderes de democracias, entidades internacionais e religiosos romperem com a noção de que o uso do ódio como instrumento político seja apenas uma nova forma de fazer política.

O "novo normal" precisa ser repudiado. Angela Merkel, em um discurso, admitiu que o mundo "voltou a brincar com fogo" diante do fortalecimento do extremismo, sete décadas depois da derrota do Nazismo. "Com muita frequência, as linhas da liberdade de expressão estão sendo deliberadamente testadas e tabus estão sendo violados sem qualquer preocupação e usados como instrumentos políticos", alertou.

25 anos depois de Ruanda, o mundo não pode esquecer das lições de um massacre que ocorreu diante do silêncio internacional e que teve, como combustível, a disseminação do ódio ao outro.

Não há espaço para aceitar a tolerância do inaceitável.

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)