Topo

Jamil Chade

Ao revisar história, Bolsonaro repete modelos autoritários

Jamil Chade

04/04/2019 07h41

 

GENEBRA – Em 2005, um acalorado debate desembarcou no Parlamento francês. Uma lei pedia que o currículo das escolas públicas colocasse mais ênfase no "papel positivo" que a colonização francesa teve para as populações africanas e asiáticas.

Diante do absurdo da proposta, coube ao então presidente Jacques Chirac agir e, num gesto pouco comum, convocou o Conselho Constitucional para barrar a lei. Chegou-se à conclusão: uma democracia não poderia rever seu passado com base em vontades políticas.

Dez anos depois, o que se ve é uma onda de líderes semi-democráticos em busca de rever o passado. Na Polônia, a extrema-direita de Jaroslaw Kaczyński passou a acusar Lech Walesa de ser um colaborador dos comunistas.

Na Hungria, alunos da oitava série podem ler nos livros escolares que a onda de refugiados "pode ser problemática" ao forçar a "co-existência de diferentes culturas". Foi o mesmo governo de Viktor Orban que removeu de Budapeste a estátua de Imre Nagy, numa operação realizada no sigilo da noite. Ao derrubar um dos principais nomes da revolução de 1956, ele ainda fez questão de reabilitar o regime de Horthy, um aliado de Hittler.

Na Turquia, Recep Tayyip Erdoğan já modificou os livros de história do ensino médio para reduzir o papel de Ataturk, símbolo da república secular. Em seu lugar, mais espaço para glorificar o passado otomano.

Na China comunista, Xi Jinping rejeita qualquer introdução de um debate real nas escolas sobre o massacre da praça de Tiananmen.

Em Cuba, Fidel Castro logo entendeu a importância de doutrinar a nova geração. Em 1961, todas as escolas passaram para as mãos do estado e, claro, com sua história oficial.

Quando Hugo Chávez morreu na Venezuela, um repórter de um órgão oficial de imprensa me contou, constrangido, que havia recebido uma lista de termos que deveriam ser usado para falar do falecimento do líder bolivariano. A palavra "morte" estava proibida e, em seu lugar, poderiam ser usados termos como "passou para a eternidade" ou "multiplicou-se". O objetivo era o de criar, principalmente entre as crianças, a noção de um herói.

Na Rússia, Vladimir Putin há anos vem derrubando estátuas e erguendo outras em homenagem a Stalin, num amplo projeto de falsificação da história. Outra ofensiva tem sido a de rescrever o papel das tropas soviéticas no Leste Europeu.

Rever a história faz parte, portanto, de uma estratégia política. Redefinir quem são os patriotas e os traidores faz parte de uma manipulação das mentes.

Negar ao estudante a possibilidade de uma história crítica de sua sociedade é doutrina-lo. Não ensina-lo.

Manipular os fatos históricos não apenas é desonestidade intelectual. É projeto de poder.

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)