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Jamil Chade

Presidente, seria mais adequado o sr. comemorar o 1o de abril

Jamil Chade

26/03/2019 12h00

Senhor presidente, quando ouvi que foi determinado pelo seu gabinete que sejam realizadas "as comemorações devidas com relação ao 31 de março", quando o golpe de 1964 completa 55 anos, confesso que não me surpreendi.

Mas logo entendi que sua reação precisava ser avaliada em termos políticos. Ela não vem de forma isolada e nem num vácuo. Ela faz parte de uma guerra que o seu governo já começou e que, talvez, seja a única que conseguirá vencer: contra os fantasmas da "ameaça do comunismo". Isso tudo em 2019.

Em sua viagem pelos EUA, o senhor declarou que "por vontade de Deus", o Brasil conseguiu mudar de rumo e evitar o caminho do comunismo. Também avisou que assumiu o governo para "destruir". E, se der tempo, construir. Na ONU, sua embaixadora, Maria Nazareth Farani Azevedo, usou da mesma estratégia para atacar Jean Wyllys. Nas redes sociais, ela o "acusou" de ter feito seu discurso usando uma roupa vermelha….

Lutar contra os fantasmas garante que as atenções estejam voltadas para assuntos que, justamente por seu caráter inexistente, podem ser vencidos. 

Marcar o dia da luta contra os fantasmas não apenas manda uma mensagem de crueldade. Mas reforça o sentido de uma guerra atual, mesmo que a ameaça apenas exista na cabeça de intelectuais do vazio na Virgínia e de seus seguidores no Palácio do Planalto.

Sem direção e nem plano, com sua popularidade em queda e desconhecendo o tamanho do cargo que assumiu, restou ao senhor os moinhos de vento.

O problema, senhor presidente, é que uma democracia não pode aceitar qualquer outra "comemoração" que não seja um compromisso formal de que a Justiça precisa ser feita, que os autores dos crimes sejam levados à julgamento e que o direito à verdade seja protegido. 

A "comemoração devida" exigiria dar voz às vítimas, exigiria buscar os pais reais das crianças sequestradas e exigiria condenar solenemente a tortura. 

Menosprezar a democracia nunca foi uma boa ideia. Muito menos numa guerra imaginária que apenas serve para encobrir a falácia de um governo.  

Sendo assim, sugiro que o senhor rapidamente mude a orientação repassada – bom, não seria a primeira vez – e proponha que seus ministros e demais membros do governo comemorem também o 1o de Abril.

O senhor sabe o motivo. 

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)