Topo

Jamil Chade

No salão oval, Brasil abandonou reivindicações históricas

Jamil Chade

19/03/2019 20h38

GENEBRA – Um dos principais resultados da viagem de Jair Bolsonaro aos EUA foi um compromisso na área comercial. Um entendimento, porém, que representa a decisão do governo brasileiro de abrir mão de reivindicações históricas, de batalhas de décadas da diplomacia nacional.

Pelo comunicado conjunto publicado pelos dois países, o presidente Bolsonaro anunciou que o Brasil "implementará uma quota tarifária, permitindo uma importação anual de 750 mil toneladas de trigo norte-americano com tarifa zero".

Não há, porém, qualquer referência ao fato de que os americanos se comprometem a reduzir seus subsídios bilionários nesse setor, uma antiga luta encampada por diferentes governos brasileiros.

A lógica no Itamaraty desde os anos 90 era simples: não havia como o Brasil promover uma abertura comercial se o Tesouro americano continuasse a distribuir bilhões de dólares aos produtores agrícolas que, assim, conseguiam competir de forma desleal com produtos de outras partes do mundo.

Esse mesmo subsídio americano permitiria uma exportação a preços mais baixos, afetando a capacidade dos produtores nacionais a desenvolver seu setor.

Por mais de 20 anos, a diplomacia brasileira passou a insistir nesse ponto e rejeitava qualquer esforço americano para que a vinculação fosse desfeita.

Apenas no setor do trigo, entre 1995 e 2017, os americanos destinaram US$ 46 bilhões em subsídios. O Brasil, em 2002, chegou a avaliar abrir uma disputa comercial por conta também do produto. Mas acabou concentrando sua guerra contra a soja.

Sim, em 2018, o Brasil viveu uma quebra da safra de trigo e, em 2019, terá de aumentar sua importação. Com a cota oferecida aos americanos, o governo terá a possibilidade de segurar os preços ao consumidor final.

Mas o acordo com os americanos não é de apenas um ano e, no fundo, a concessão pode marcar o fim de uma vinculação da situação dos subsídios e a abertura comercial.

Em termos sistêmicos, portanto, a sinalização pode ser a de que um precedente está sendo aberto.

Também foi indicada a possibilidade de que o Brasil dê início à importação de carne suína dos EUA. Neste caso, o governo pode se confrontar com outro problema: a importação de risco sanitário.

A carne americana continua sob vigilância diante de uma recente epidemia e a entrada do produto no mercado brasileiro poderia derrubar anos de controles nacionais no setor suíno.

Oficialmente, o pagamento que ganhamos é a possibilidade de exportar carne bovina. Salvo que, de fato, não existia motivo real para que os americanos mantivessem o embargo à exportação brasileira e, agora, usam uma reciprocidade às avessas para conseguir exportar o que lhes é de interesse.

Somos ricos – Por fim, o capítulo mais indecente de toda a agenda comercial. O governo americano indicou que ajudaria o Brasil a aderir ao clube das nações ricas, a OCDE. Essa era uma reivindicação ainda do governo Temer, mas que esbarrava no veto americano.

Em troca de fazer parte dos países ricos ocidentais, o Brasil aceitou abrir mão de dinheiro. Ou seja, na OMC, o País abandonará sua reivindicação histórica por ser tratado como um país em desenvolvimento. Nas negociações futuras, aceitará os mesmos padrões de exigências, os mesmos cortes de tarifas e os mesmos compromissos que economias como a da Suíça, Finlândia, Canadá, Alemanha ou EUA.

Para que fique claro: a economia brasileira precisará fazer liberalizações no mesmo ritmo de economias maduras e tecnologicamente avançadas.

Saímos de Washington imaginando que estamos caminhando para ter um status de país rico, membro de um clube de ricos e seguindo as regras impostas aos ricos.

Apenas esquecemos de dizer que continuamos com milhões de miseráveis, uma economia frágil e uma desigualdade indecente.

Ao sair da Casa Branca, Bolsonaro justificou suas decisões: "alguém tinha de ceder". E com isso se foram parcelas dos mais de 20 anos de lutas, intermináveis reuniões e batalhas do Brasil para corrigir as regras comerciais internacionais.

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)