Fantasiados de povo gentil
O carnaval é o rito da inversão. Durante o período de festas, a ordem social está simbolicamente trocada e os papeis de cada um na sociedade substituídos. Como descreveria Harry Sanabria em seu livro "Antropologia da América Latina", o carnaval é o espaço em que o impossível passa ser real, em que tudo que é penalizado passa a ser incentivado. Implicitamente, o que o desfile traz é um questionamento da ordem social, camuflado por fantasias.
Entre reis, piratas ou jardineiras, há uma fantasia maior sendo transmitida nesta semana do Brasil ao mundo: a de uma sociedade gentil e de um homem cordial, mitos diariamente reforçados em diferentes ambientes – das salas de negociação diplomática aos encontros informais – como um atributo único da sociedade brasileira.
O termo "homem cordial" foi primeiro cunhado por Ribeiro Couto. Mas ganhou uma nova dimensão em 1936, com Sérgio Buarque de Holanda.
Num texto escrito em 2014, Leonardo Boff fez questão de deixar claro que o autor de Raízes do Brasil jamais equiparou "cordialidade" a uma índole pacífica. "Sergio Buarque assume a cordialidade no sentido estritamente etimológico: vem de coração", escreveu. "O brasileiro se orienta muito mais pelo coração do que pela razão. Do coração podem provir o amor e o ódio. Bem diz o autor: "a inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, visto que uma e outra nascem do coração", completou.
A realidade é que, mesmo diante dos diversos esclarecimentos de sociólogos e escritores, governos de diferentes tendências e certos grupos da sociedade fizeram questão de resgatar a ideia manipulada da cordialidade como marca nacional, transformando-a em um DNA do brasileiro. De tanto repetida, ela passou a ser verdade aos olhos de cegos ou daqueles que se recusam a ver a realidade.
Em 2009, quando o Rio venceu Chicago, Tóquio e Madri na corrida para sediar os Jogos Olímpicos, nos foi dito que nossa cordialidade também pesou para garantir votos. Uma década depois, a suspeita é de que aquela cordialidade foi completada com subornos.
Afinal, o que é a corrupção senão um símbolo de um sistema fantasiado de democracia?
Também nos foi dito que construíamos pontes e que nossa suposta cordialidade abria portas para conversar com Kadafi, Ahmadinejad e tantos outros. Enquanto isso, suas vítimas nos imploravam – em vão – para que usássemos esses encontros para denunciar a tortura e mortes.
Neste ano, nota 10 para a tentativa do enredo da Mangueira de mostrar que a história da sociedade brasileira nem sempre foi marcada por esse "povo gentil".
"Brasil, meu dengo/ A Mangueira chegou/ Com versos que o livro apagou/ Desde 1500/ Tem mais invasão do que descobrimento/ Tem sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado/ Mulheres, tamoios, mulatos/ Eu quero um país que não está no retrato", diz o samba.
"Chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês", completa a letra que, de passagem, ainda faz uma homenagem à vereadora Marielle Franco, assassinada há quase um ano.
De forma isolada ou em grupos, foliões também demonstraram nos últimos dias que existe no Brasil um intenso questionamento dessa ordem social.
Mas talvez tenha chegado a hora de ir além. Quando o ódio eclode nas redes sociais diante da morte de uma criança de sete anos, quando o ódio se escancara diante do assassinato de uma defensora de direitos humanos, quando a violência nas ruas mata mais que guerras, quando um leve sorriso se nota ao saber da decapitação de homens numa prisão, quando famílias se queixam de ter de assinar carteira de trabalho para domésticas, chegou na hora de se perguntar: aquela manipulação do mito da cordialidade tem ainda algum sentido?
Quando o ódio deixa de ser apenas uma expressão psicológica e emocional e passa a ser um instrumento de poder, também chegou a hora de se perguntar: a que serve a manutenção cômoda dessa falácia da cordialidade?
Talvez ela sirva para evitar a imagem que se verá quando a máscara cair e o ódio silenciar a bateria.
Talvez sirva para não nos obrigar a buscar soluções para uma realidade em que a violência – em todas suas formas – rasga a fantasia, atravessa a história em notas dissonantes e em descompasso com um mito que jamais foi verdade.
Talvez chegou o momento de tirarmos os adolescentes da conversa, bloquear o acesso deles às redes sociais e debater de forma madura nosso destino. Se eles ainda assim baterem o pé, sempre há a possibilidade de enviá-los a uma matinê, fantasiados de democratas.
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